Há festivais que são meros ajuntamentos de bandas… E depois há o Under the Doom. Onde, a música não é só música; é ritual, é catarse, é tormento partilhado

Durante dois dias, Lisboa foi varrida não só pela tempestade Gabrielle, que castigava as ruas com rajadas de vento e chuva incessante, mas também por uma tempestade emocional que se abateu sobre todos os que, como eu, encontram no Doom Metal um espelho da alma e um bálsamo para o sofrimento.


DIA 1 — TRÂNSITO, BENFICA E UM FESTIVAL A MEIO GÁS…

Lisboa estava impossível! Sexta-feira, final de tarde… A cidade transformada num campo de batalha, em cada carro um soldado isolado… Batalhões, a querer chegar mais rápido a casa, mas sem nunca ceder um centímetro.

É infelizmente o retrato da nossa sociedade! Que cada vez está mais focada no seu próprio umbigo, onde o “eu” engole o “nós”.

E como se não bastasse, um jogo do Benfica atirou gasolina para a fogueira, afogando a Segunda Circular num CAOS maior.

Um percurso onde normalmente demoro 15 ou 20 minutos transformou-se numa odisseia de 55 minutos… Era como se aqueles 15-20 km de Miraflores ao Oriente, se tivessem multiplicado por três ou quatro, um arrastamento digno de uma faixa de Funeral Doom

Quando finalmente cheguei ao Music Station, uma sala relativamente nova, toda ela moderna, colada à Gare do Oriente, foi já para assistir aos últimos suspiros do concerto de Earth Drive! :_(

E bastaram aqueles cinco minutos para perceber o que tinha perdido: Doom Psicadélico com alma Setentista, riffs viajantes e uma voz Feminina arrojada que cortava o ar como uma lâmina emocional… Uma Vibe hipnótica, que nos envolvia a cada nota…

Saí da sala para o pátio para respirar… e tive uma sensação agridoce: como quem encontra uma joia enterrada, mas só a consegue tocar por um instante.


TodoMal — A primeira grande surpresa da noite

Alguém me tinha dito antes:

“Bruno, os TodoMal vão-te surpreender.”

E não estavam a brincar.
Estes espanhóis são relativamente recentes, nasceram em 2020, mas carregam décadas de experiência musical. O seu som é uma fusão de doom profundo, melancolia gótica e viagens cósmicas pelo space rock, uma tapeçaria sonora carregada de emoção.

Com dois álbuns conceptuais já na bagagem, Ultracrepidarian (2021) e A Greater Good (2023), trouxeram ao palco uma intensidade visceral.
Cada música era uma narrativa, um mergulho num universo próprio.
O público percebeu, absorveu, devolveu em aplausos.
Foi a primeira grande surpresa do festival!


Antimatter — A catarse perfeita

Quando Mick Moss subiu ao palco, o Music Station explodiu em aplausos.
Pelos vistos não era o unico fã do Mick e dos seus Antimatter. E isso deixou-me feliz! No meu caso, sou fã há muitos e bons anos, e até a dada altura, a (g)Ritos Nocturnos, tinha equacionado a hipótese de o trazer a Portugal para uma tour intimista, que salvo erro caiu por terra, porque o homem nessa tour estaria a viajar de Auto-Caravana e a coisa tinha-se tornado quase insustentável.

Álbuns como Leaving Eden ou Black Market Enlightenment são tratados de alma, onde Moss fala de perda, alienação, dor e redenção com uma honestidade brutal. Ao vivo, isso não é apenas ouvido! é sentido na pele, como uma ferida aberta…

Foi um concerto do caraças! introspetivo, intenso, quase confessional.
Um dos momentos mais profundos e emocionalmente devastadores do primeiro dia.


Saturnus — Quando a tempestade entra pela alma

Lá fora, a tempestade Gabrielle uivava, chicoteando as ruas de Lisboa.
Dentro do Music Station, as luzes baixaram, e as sombras cresceram.
Era chegada a hora de Saturnus, os mestres dinamarqueses do Funeral Doom.

Desde Paradise Belongs to You até Veronika Decides to Die, venero esta banda como se venera uma deidade antiga! e este concerto foi irrepreensível, uma celebração da tragédia em forma de música.

O som deles é majestoso, arrastado, pesado como a própria gravidade.
É o peso do mundo a cair sobre os nossos ombros, nota após nota.
Temas como I Long e Christ Goodbye são pura poesia em ruínas; letras que falam de perda, fé perdida e desespero existencial. Ao vivo, são quase litúrgicos, como se estivéssemos numa missa dedicada à dor.

Quando terminaram, senti-me de joelhos, exaurido, mas vivo.
E lembrei-me de porque continuo a acreditar no poder transformador do Doom:

É a TEMPESTADE que nos DESTRÓI… e nos reconstrói!


Swallow the Sun — A decepção inesperada

Depois da catarse de Saturnus, veio o frio da desilusão.
Quem me conhece sabe que Swallow the Sun ocupa um lugar especial na minha vida.
Eu e a minha mulher já os vimos inúmeras vezes, e em 2015 tivemos o privilégio de trabalhar com eles na lendária tour do Songs of the North.
Foi uma digressão histórica, complexa, inesquecível — com Wolfheart a abrir e a preciosa ajuda da nossa amiga Sílvia Lunah, que também esteve presente neste Under the Doom.

Mas este concerto… não correu bem.

Logo nos primeiros segundos percebi que algo estava errado.
O som parecia encolhido, como se o sistema principal, o PA de Front Of House estivesse desligado ou quanto muito a 1/3 da capacidade…

O que ouvíamos vinha sobretudo do palco, não das colunas principais.

Fiz um teste rápido com o telemóvel, mesmo sabendo que não é a ferramenta ideal, e o resultado foi chocante:

  • Quase menos 20 dB em zonas onde o line array deveria projetar o som de forma uniforme.
  • Como se estivéssemos numa bolha acústica, sufocados pela falta de pressão sonora.

Erro clássico em festivais: faz-se o line check, mas “alguém” esquece-se de abrir o PA principal antes da atuação começar… Pensei: “Ok, vão corrigir depois da primeira música.” Não corrigiram… Nem na segunda… Nem na terceira… Nem na ultima… O resultado? Um concerto esvaziado, sem impacto, uma sombra do que Swallow the Sun costuma ser. E a frustração foi ainda maior por se tratar de uma das bandas que mais esperava ver.

E foi o fim da primeira noite… sai da sala com a alma fria e dorida, como quem vê heróis a fraquejar no campo de batalha… 🙁


DIA 2 — CHEGUEI TARDE, SAÍ MAIS CEDO

Nota pessoal:
Festivais indoor não deveriam ter mais de 5 bandas por dia, nem ultrapassar as 6-7 horas de música.
Quando os horários são tão puxados, sem espaços para se sentar, comer ou circular, deixa de ser experiência… e passa a ser penitência.
E o doom pode ser sofrimento, mas não devia ser tortura física.

Sábado, fui destacado pela Câmara Municipal de Lisboa para a Festa do Livro em Belém, uma iniciativa da Presidência da República. Resultado: cheguei tarde ao Music Station e perdi a banda portuguesa que mais queria ver nesse dia: Ethereal.

Com o seu terceiro álbum, Downfall, os Ethereal continuam a construir um som que mistura doom, gothic e heavy metal, cheio de melodia e peso emocional.
São uma das nossas maiores referencias dentro do género, e foi doloroso não estar presente para testemunhar mais um passo na sua ascensão!


Invernoir — Amor(te)

Os italianos Invernoir foram uma surpresa calorosa.
O seu doom melódico e romântico é carregado de subtilezas e atmosferas densas, como uma carta de amor escrita à beira do abismo.
O momento alto foi Amor-te, dedicada pelo guitarrista à sua esposa.

Foi um começo forte, que me fez acreditar que a noite poderia ser memorável.


Why Angels Fall e as suas eternas intros...

O regresso dos portugueses Why Angels Fall trouxe-nos um som atmosférico, melódico, mas demasiado contido. Parecia uma eterna introdução, sempre a prometer algo que nunca chegava. Qualidade não lhes falta, mas a energia dispersa levou-me a aproveitar para jantar e recarregar baterias…


Forgotten Tomb : O peso negro de Itália

Outros vindos de Itália: Forgotten Tomb, que começaram no doom depressivo mas evoluíram para um blackened death metal agressivo e impiedoso.
Não é totalmente a minha praia, mas não posso negar que foi um concerto sólido, com intensidade avassaladora e o publico curtiu!

Foi um bom momento de quebra de monotonia, uma descarga de raiva pura.


Clouds — A alma em cinzas

E então, veio a catarse.
Clouds são, para mim, a essência do doom moderno: introspectivo, quase neo-romântico, como se cada acorde fosse uma pétala caída sobre um túmulo.
A intensidade emocional foi devastadora, lembrando os melhores momentos de My Dying Bride e Anathema dos anos 90.

Foi, sem dúvida, a banda da noite.
Saí dali de coração em ruínas, mas grato.


My Dying Bride; A ultima estocada ao coração

MDB voltaram a Lx tantos e tantos anos depois, com um Som cheio, sim… Mas… Emoção? Nem por isso… Mikko Kotamäki, é um excelente vocalista, mas eu parecia estar a ver uma segunda performance de Swallow the Sun em vez de My Dying Bride. Faltou teatralidade, entrega, dramatismo: tudo aquilo que o Aaron Stainthorpe sempre trouxe à banda. E parece-me que sem Aaron, My Dying Bride não soa a My Dying Bride… apesar dos exímios músicos. São apenas uma sombra do que foram… E foi para mim, como voltar a um amor antigo, e perceber que ele já não existe.


CONCLUSÃO/DESILUSÃO FINAL… A TEMPESTADE INTERIOR.

Pelo adiantar da hora e o cansaço acumulado, abandonei o Music Station antes de Hyubris encerrarem o festival com o seu poderoso novo albúm Tormentos.
Lá fora, a tempestade Gabrielle ainda rugia… E eu, arrastando os pés, senti-me parte dela, um homem partido, mas não derrotado.

O Under the Doom 2025 foi um festival de contrastes:

  • Momentos sublimes com Saturnus, Antimatter, Clouds e Invernoir.
  • Surpresas com TodoMal e Forgotten Tomb.
  • E desilusões técnicas e emocionais com Swallow the Sun e My Dying Bride.

Mas é esta a imperfeição que torna o festival único:
é sempre uma viagem emocional, feita de altos e baixos, onde o peso, a beleza e o desalento coexistem!

Saí de Lisboa com a certeza de que, por mais trânsito, falhas ou frustrações, a música continua a ser o nosso altar, e o doom, a nossa liturgia favorita.
E mesmo no meio do CAOS, haverá sempre um palco onde, por algumas horas, a música nos SALVA… antes de nos destruir uma vez mais.


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